O cordão sanitário (José Vitor Malheiros)
O resultado das autárquicas não pode ser lido como uma avaliação das políticas dos partidos a nível nacional mas sim e apenas como uma avaliação da gestão autárquica e da qualidade das propostas feitas pelas organizações locais dos partidos, coligações e movimentos de cidadãos que se apresentam ao escrutínio. Certo? Errado.
É verdade que existem descarados abusos na leitura feitas pelos partidos no day after das autárquicas, com todos os partidos a cantar vitória – porque tiveram mais votos, porque tiveram mais câmaras, porque tiveram mais deputados municipais, porque conquistaram uma câmara, porque perderam menos votos ou menos câmaras do que se esperava – e tudo isso vai acontecer de novo. O PSD vai dizer que o seu resultado (seja ele qual for) mostra como o povo compreende a acção do Governo e a necessidade dos sacrifícios desumanos a que Pedro Passos Coelho o tem submetido. O PS vai usar um voto a mais para cantar vitória e para garantir que o povo confia nos socialistas e em António José Seguro como uma sólida alternativa de poder. E sabemos que nenhuma das coisas será verdade.
Mas, posto isto, é um facto que, na situação a que chegámos, onde os partidos do Governo – no Governo, no Parlamento e fora dele – defendem o indefensável, vendem o país a retalho por pura subserviência ou por benefício pessoal, atraiçoam os seus compromissos eleitorais e os juramentos por sua “honra”, espezinham a Constituição e as leis em geral, humilham os pobres e escarnecem dos necessitados, incitam os jovens a abandonar precocemente o ensino, os desempregados a emigrar e os velhos a morrer por falta de tratamentos médicos, não é aceitável entregar o voto aos protagonistas desta política. Desta vez, mais do que nunca, o voto autárquico vais ter uma leitura nacional e isso será mais justo do que alguma vez foi.
Um voto tem muitas leituras e serve para muitas coisas. Ele representa uma vontade pessoal dos votantes (que nunca poderemos conhecer) mas os resultados eleitorais são submetidos também a uma leitura por parte dos partidos e dos comentadores ajudando a sedimentar a opinião pública. E é evidente que uma votação expressiva nos partidos do Governo – ainda que com perda de percentagens e de câmaras – será lida, se não como um apoio, pelo menos como um gesto de resignação perante as políticas criminosas do Governo.
E isso é algo que o povo português não pode fazer, sob pena de perder não só a pele mas também a alma.
Num país onde a venda de automóveis de luxo apresenta as maiores taxas de crescimento (a Jaguar teve um aumento de 59% nas suas vendas em Agosto) mas onde há cada vez mais famílias a recorrer a cantinas sociais para dar de comer aos filhos, não é admissível votar nos partidos que integram o Governo que impõe esta situação, ainda que se trate de uma eleição para uma junta de freguesia. A política que o Governo e os partidos do Governo defendem e põem em prática a nível nacional é uma política indecente, e quem defende políticas indecentes a nível nacional não pode ser decente ao nível local. Quem defende uma política de venda do país às mais ricas potências estrangeiras, na esperança de receber trinta dinheiros quando sair do Governo, não pode pretender ter o interesse das populações locais no seu coração. Quem concebe e põe de pé uma política de desemprego, de descida dos salários e de pobreza crescente não pode pretender defender uma política de pleno emprego e de desenvolvimento harmonioso e sustentável a nível local. Quem defende uma política de venda do património público mais rentável às empresas privadas não pode pretender defender o património a nível local. Quem defende a destruição do Estado e a privatização de serviços públicos essenciais para poder transferir os lucros para os aligarcas que serve não pode pretender querer uma câmara centrada nas pessoas e activa na acção social. Quem é servil perante os fortes em todas as circunstâncias não pode pretender defender os seus munícipes perante os interesses privados ou os poderes centrais. Quem pactua com a mentira e encobre cambalachos de todos os tipos, quem nomeia Relvas e Machetes e Marias Swaps não pode pretender ter uma política de verdade e de lisura.
A avaliação do resultado das autárquicas deve ser feito à escala nacional porque há desta vez uma clara escolha ideológica entre um modelo neoliberal de destruição do Estado social, representado pelo PSD e pelo seu sidekick CDS, que tem o dinheiro como único “valor” e um modelo de sociedade centrado nas pessoas.
Admito que, num ou noutro caso muito particular, haja razões para votar localmente PSD ou CDS. Mas quem o fizer deve saber que o seu voto será usado para validar a actual política. Só isso deveria chegar para evitar o gesto. Há pessoas e políticas que devem ser cuidadosamente cercadas por um cordão sanitário.
José Vitor Malheiros, “Público” 24 setembro 2013
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