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Os limites da legitimidade

21 de Fevereiro de 2013


Entendamo-nos. Há uma pressa excessiva nos tempos que correm em aceitar tudo o que é protesto contra o Governo como a expressão incontestável e legítima da vontade popular contra um Governo não democrático. Ora não é bem assim. A tentativa permanente de conotação deste Governo com o da ditadura, através da recuperação e actualização de símbolos da luta contra o fascismo – como a Grândola, Vila Morena, claro – ilude o facto de que vivemos em democracia. Desde que a crise se agudizou, só houve dois protestos que traduzissem realmente a dimensão da própria crise – a 12 de Março de 2011 e a 15 de Setembro do ano passado. As manifs e as greves da CGTP têm a mesma adesão que sempre tiveram e banalizaram-se. Para o bem e para o mal, e por muito que custe dizê-lo, a regra geral do país continua a ser a pasmaceira. Exceptuando naturalmente as páginas do Facebook, onde o Governo é derrubado várias vezes ao dia. Mas isso é o mundo virtual. No mundo real, o mesmo eleitorado que validou o Governo de José Sócrates que nos atirou para os braços da troika elegeu depois a desgraça chefiada por Passos Coelho que não se sabe bem o que é. Os factos são estes.

Posto isto, não há mal em interromper o ministro Miguel Relvas ao som da Grândola – desde que não se prive o mesmíssimo ministro da sua liberdade de expressão. E muito menos que se persiga fisicamente o dito governante pelos corredores de uma universidade, como aconteceu. O princípio aplica-se aos estudantes que, na terça-feira, humilharam Miguel Relvas, reduzindo-o a um fugitivo. Insisto, não sorrio. Estas práticas devem ser condenadas e ultrapassaram os limites do aceitável. Democracia não é isto. Custam-me as pessoas que se arrogam o direito a falar em nome do povo como se fossem elas o povo. Isso podia ser feito nos dias em que a Grândola era um símbolo da resistência à ditadura. Porque, numa ditadura, o povo não tem voz e todos os que reivindicam o direito do povo a ter voz podem falar em nome dele. Em democracia, não é a mesma coisa. E, acrescento, o recurso aos símbolos do antifascismo é também um sintoma de uma esquerda parada no tempo, reduzida a nostalgias inventadas e emocionais. Mesmo quando os seus protagonistas são jovens.

Mas na tarde no ISCTE em que um ministro acossado ficou sequestrado e perdeu a face perante a opinião pública por não ter enfrentado os que o contestavam (tal como acontecera na véspera, no Clube dos Pensadores), ninguém fez mais e melhor do que o próprio ministro para deslegitimar de uma penada o Governo e as instituições democráticas.

Tudo foi mostrado em directo. É confrangedor o silêncio com que Miguel Relvas olha os que o contestam. Um político? Ou um negociador de influências que se sente confortável a passar o réveillon no Capacabana Palace do Rio de Janeiro mas que fica sem pinga de sangue no momento do confronto político? Na mesma situação, Mário Soares teria enfrentado e obrigado os que o contestavam a falar, pelo menos até ao limite do possível. Que convicção tem aquele homem que olha mudo os que protestam ou que na véspera trauteava desajeitado a Grândola, como se quisesse apoucar quem protestava – e acabando ele próprio por ser achincalhado como poucos políticos foram desde 1974?

Afinal de contas, qual era o espanto? O ministro que chegou ali era o mesmo que nunca prestou contas pela sua licenciatura em forma de Bimby que achou que o tempo e algum ilusionismo mediático fariam esquecer os dissabores. O seu silêncio exprimiu a arrogância de quem governa mas acha que não precisa de prestar contas, e pensa que ser político é apenas estar atrás do biombo onde fazem e desfazem os jogos de poder. Miguel Relvas foi eleito. Mas soube comportar-se como um político eleito? A vitimização não lhe fica bem.

Entendamo-nos, portanto. A maior ameaça à estabilidade e à legitimidade das instituições não vem do protesto nem do brutal (ainda que mudo) descontentamento por causa da desumanidade das políticas de austeridade, desse “ajustamento” económico e financeiro feito às custas de um enorme o desajustamento social. Não, a maior ameaça à legitimidade das instituições vem de um Governo sem autoridade moral para pedir sacrifícios, de um ministro que passeia a sua impudência. Com Miguel Relvas, é como se o pior da era Sócrates tivesse transitado para o Governo que foi eleito contra os males do socratismo. A ideia de que tudo é permitido a quem governa e que o artifício mediático chega e sobra para iludir o vazio político. Essas coisas funcionavam quando a crise não era assim. O Governo age e fala com a maior indiferença face aos sacrifícios que está a pedir aos cidadãos. O vazio de legitimidade que se criou à volta desta arrogância é muito perigoso.

Miguel Gaspar – “Público” 21 fev 2013

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