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Somos todos CSI

19 de Junho de 2021


Ontem as redes sociais enojaram-me. As caixas de comentários dos jornais online adoeceram-me. Tínhamos um menino desaparecido. Tínhamos um bebé desaparecido. E a maioria dos justiceiros de teclado afadigava-se a acusar os pais e a fazer uso do diploma em criminologia que obteve por assistir ao CSI (Carmen Garcia) [Nota: recomenda-se aos directores de informação de todos os canais de TV a leitura atenta dos comentários a este artigo nas páginas do “Público”]

Somos todos CSI

Não imagino a angústia de não saber de um filho. Recuso-me a pensar no que sentirá uma mãe que vê as horas a passar e o desespero a agravar. E peço que a vida me poupe à dor de estar debaixo de um tecto enquanto chove lá fora, a saber que um dos meus meninos está desprotegido e entregue à sua própria sorte.

Sempre que uma criança desaparece, a imagem que vem à minha mente é a de Filomena Teixeira, a mãe do Rui Pedro, e o meu coração fica pequenino. Já repararam como a vida tem destruído a alma desta mulher? Porque o desaparecimento de um filho é, creio, a única coisa pior do que a sua morte. Uma mãe morre no momento em que um filho morre. Mas quando um filho desaparece, a mãe morre a cada dia que acorda sem saber dele e, mais do que isso, está condenada a morrer todos os dias da sua vida até que, num golpe de misericórdia, lhe seja permitido não voltar a acordar.

Ontem as redes sociais enojaram-me. As caixas de comentários dos jornais online adoeceram-me. Tínhamos um menino desaparecido. Tínhamos um bebé desaparecido. E a maioria dos justiceiros de teclado afadigava-se a acusar os pais e a fazer uso do diploma em criminologia que obteve por assistir ao CSI.

Eu sei que somos o país onde desapareceram o Rui Pedro e a Maddie, sei que somos o país da pequena Joana e sei que é impossível apagarmos da nossa mente o nome Valentina. Mas também sei que a maioria dos pais ama os filhos e que dão a vida por eles sem hesitar. Sei que por cada pai psicopata há milhões de pais extremosos e que amam os filhos acima de qualquer coisa.

Não conheço os pais do Noah, nunca tinha ouvido falar deles até ontem e não faço ideia de qual a sua opção de vida e do método que escolheram para educar os filhos. Mas, tal como eu, 99,99% dos portugueses desconhecem tudo isto e, ainda assim, muitos não hesitaram em despejar comentários cheios de acusações e certezas baseadas numa mão cheia de nada.

De um lado dizia-se que uma criança daquela idade não caminha tanto, do outro que seria impossível uma criança vestir-se e ser tão autónoma. E eu, que sou mãe de um menino que faz três anos no próximo mês e que seria capaz de fazer tudo isto, fico meio atónita. Porque as crianças não são todas iguais. E se o meu filho mais velho, aos dois anos e meio, jamais teria conseguido tal proeza, garanto-vos que o mais novo é menino para abrir o armário, comer qualquer coisa, vestir e calçar o que apanhar e sair porta fora para executar qualquer ideia tola que lhe passe pela cabeça. Preciso de mil olhos para o meu filho João. Mas talvez a mãe do Noah tenha outra forma de ver as coisas ou, quem sabe, o cansaço a tenha derrubado e os mil olhos não tenham conseguido abrir-se. Não sei. E até ver, ninguém sabe.

Não acredito totalmente no mito do bom selvagem. Não acho que todos, por natureza, sejamos naturalmente bons e ingénuos. Mas recuso-me a acreditar que somos todos tendencialmente maus e não aceito que, quando uma criança desaparece, a primeira reacção de tanta gente seja acusar os pais que, muito provavelmente, estão presos no maior calvário das suas vidas. Não sei, não sei mesmo, em que ponto é que fomos, enquanto sociedade, perdendo a capacidade de nos colocar nos sapatos do outro e decidimos antes assumir o papel de juízes. O que sei é que não tem de ser assim.

Noah foi encontrado. O Noah está bem, está vivo. O Noah, felizmente, não foi “outra Valentina” como ontem muitos sugeriam. E isso é aquilo que mais nos devia importar. Aquele menino tão bonito, aquele menino do campo, foi encontrado e está de volta a casa. O resto, a investigação posterior, é trabalho das autoridades competentes. E se por acaso existir necessidade de um julgamento, esse será feito num tribunal devidamente qualificado e não nas redes sociais.

Pessoalmente, acredito na inocência dos pais do Noah. Acredito que tenham só uma forma diferente de educar e de olhar para a vida. Acredito que fazem por ele o que acreditam ser melhor. E espero, mas espero mesmo, que depois do sofrimento que experimentaram não lhes passe sequer pela cabeça espreitar o que foi escrito a seu respeito nas últimas horas. Porque se o fizerem vão encontrar muito do pior da humanidade. Desta humanidade que abandonou Rousseau e abraçou Hobbes. Desta humanidade que, às vezes, é mesmo de uma amargura e de uma desumanidade gritantes.

Carmen Garcia, Enfermeira – “Público”18 junho 2021

https://www.publico.pt/2021/06/18/impar/cronica/csi-1966999

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