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Uma dominação temática simplista

3 de Abril de 2021


A pandemia torna tudo cinzento e assaz aborrecido. Não havia necessidade. Eu sei que esta comparação de meios e recursos, preparação e qualidade, é injusta, mas leia-se o New York Times, ou o Guardian, ou o Financial Times e veja-se como nenhum deles tem esta dominação temática simplista, mesmo quando tratam da pandemia e da gravidade nos seus países como os EUA ou o Reino Unido. (José Pacheco Pereira)

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«É preciso muita paciência para ler, ver e ouvir grande parte da comunicação social portuguesa. Bem sei que os tempos não estão favoráveis à variedade, ao pluralismo e à imaginação, mas sempre podia haver um esforço. A pandemia ocupa tudo, o que seria compreensível se os olhares sobre o que se está passar fossem diferentes, mas é tudo igual. Há uma nova notícia todos os dias, os números de infectados, mortos, recuperados, o que é sempre uma notícia. Mas depois são páginas e páginas de textos que poderiam ser escritos há meio ano, no mês passado, a semana passada, e consideravelmente repetitivos, seja pelo tema, seja pela abordagem de órgão de comunicação A para o B, o C, etc.

A pandemia torna tudo cinzento e assaz aborrecido. Não havia necessidade. Eu sei que esta comparação de meios e recursos, preparação e qualidade, é injusta, mas leia-se o New York Times, ou o Guardian, ou o Financial Times e veja-se como nenhum deles tem esta dominação temática simplista, mesmo quando tratam da pandemia e da gravidade nos seus países como os EUA ou o Reino Unido. (As televisões são mais monocórdicas.) Estes grandes jornais lêem-se com curiosidade e demoram tempo a chegar ao fim, o meu critério sempre para medir o interesse de um jornal. E são variados, muito variados nas suas edições com raros casos de parecenças, fora de eventos que se impõem a qualquer órgão de comunicação social. Foi o caso do cargueiro encalhado no canal do Suez que causou perturbações no comércio mundial. Um navio apenas, e tinha tudo para ser notícia, imagens e vídeos, drones e rebocadores e filas e filas de engarrafamento. Mas, mesmo assim, passado o núcleo duro da notícia, os artigos, as opiniões, os pareceres de economistas, variavam e podiam-se ler vários jornais sem fastio nem repetição.

Outro aspecto péssimo da pandemia foi exacerbar a praga do politicamente correcto. Alguém percebeu o que se passou em Corroios? Li praticamente todas as notícias e não se percebe nada. Havia um gangue ou era uma rixa entre famílias? Rixas entre famílias com armas de fogo costumam passar-se entre ciganos. Foi assim ou não? Se calhar não foi e a suspeita fica no ar, porque uma interpretação dogmática do Código Deontológico impede os jornalistas de nos explicarem o que se passou. E esta é uma informação relevante. Se foi um gangue, que gangue? É suposto a polícia conhecer os gangues que actuam nos bairros degradados da Margem Sul e Norte do Tejo. Barricaram-se num armazém disparando contra a polícia ou não? Era um ou dois ou 10, e escaparam, como parece escaparem-se sempre. O que foi preso, por que razão é que foi preso, para a seguir ser libertado? Quando a polícia anunciou negociações era para falar com um armazém vazio ou havia gente lá dentro? Repito, não se percebe nada.

Por muito que isto escandalize muita gente, vale mais ler o Correio da Manhã, com o seu alinhamento de notícias, com o futebol no corpo habitual da política, o crime a seguir e, no fim, as histórias das vedetazinhas do nosso triste jet set. Muitas críticas podem ser feitas ao modo como o jornal trata os seus conteúdos, como sejam as ilustrações de mulheres atacadas e violadas, sempre com ar sexy e desnudas. Mas no meio há notícias diferentes, muitas vezes tratadas de forma tablóide e sensacionalista, mas nem por isso deixam de ser notícias, há uma página para os media com informação relevante, quando não se fica apenas pela guerra Cofina-TVI, há um tratamento da pandemia assente em gráficos actualizados todos os dias.

Por boas e más razões poupam-nos as páginas excessivas sobre a “cultura”, muitas vezes resultado de lóbis culturais que têm acesso aos jornalistas. Já disse mais do que uma vez que valia a pena deixar passar um ou dois anos e rever a “obra” de muitas revelações artísticas com direito a páginas de texto e que depois dão em nada. O mesmo para as start-ups anunciadas como grandes sucessos tecnológicos e empresariais, e que também não duram um ou dois anos e depois vão para o cemitério das falências. O que isto significa é que o fundamento inicial das notícias era muito pouco consistente, não incorporava nem um julgamento independente sobre a qualidade do trabalho artístico, nem a solidez empresarial mínima ou o valor da ideia original das start-ups. São artistas e é o que conta, são start-ups e é isso que conta, ou seja, a moda, as amizades, os conhecimentos e os negócios sem escrutínio nem julgamento é que contam.»

(José Pacheco Pereira – “Sábado”, 31 março 2021. Texto escrito conforme a norma ortográfica de 1945.)

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