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Ciberan@rquistas

5 de Junho de 2021


Nos dias 1 e 2 de junho realizou-se algures no ciberespaço a assembleia digital, organizada pela presidência portuguesa, que aprovou uma declaração sobre a democracia digital. O maior problema é o menos falado: a transição digital sem democracia e liberdade é o “caminho da servidão” na era do “capitalismo de vigilância”, na expressão da professora de Harvard, Shoshana Zuboff. (José Magalhães)

As grandes plataformas digitais não são a sonhada praça pública do século XXI, gratuita, livre e pluralista. Oferecem a milhões de seres humanos informação, divertimento, emoções sortidas e chamadas sem custos, mas são espaços privados e visam o lucro. Sugam dados pessoais, que através de uma formidável engenharia algorítmica revelam tudo sobre nós.

Com esses dados é possível bombardear cidadãos com mensagens personalizadas, comerciais e políticas, feitas “à medida dos likes”. O maná tem preço e vai direito aos cofres dos grandes operadores, demolindo o modelo de negócio das entidades reguladas pelas velhas leis de imprensa.

Como se chegou a isto? Durante anos, os legisladores em ambos os lados do Atlântico fizeram vista grossa ao efeito disruptivo da transição digital na saúde da democracia e no seu pilar liberdade de imprensa.

Havia e há razões para o medo de legislar: pode ser impopular e exige pisar terreno digital, chinês para a geração que acha que TikTok é um relógio.

A verdade é dramática: perdeu-se a disposição de pagar a informação que se consome, há camadas inteiras da população em dieta mediática (geração M e os jovens zoomers), cresce a contestação ao imposto para financiar TV e rádios públicas sem público.

A declaração de lisboa sobre a democracia digital tem o mesmo código genético da carta portuguesa de direitos humanos na era digital aprovada por mais votos do que os necessários para fazer uma revisão constitucional e sem votos contra. A Lei 27/2021, de 17 de maio, foi debatida, de porta aberta, durante mais de um ano, recebendo contribuições valiosas de muitas entidades.

Nenhuma norma da carta põe em causa a liberdade de expressão. Quem conseguiu a proeza de não topar (e denunciar) que o Parlamento se preparava para “restaurar a censura” treslê agora o artigo 6.º da lei que dá aos cidadãos o direito de se queixarem à ERC quando tropecem em fake news. Fingem ignorar que esse direito existe desde há anos quanto aos media tradicionais. Nada justifica que as fake news tenham imunidade e rédea solta.

Hannah Arendt explicou exemplarmente como as opiniões são informadas por factos ou pela sua negação propositada. A redes sociais do nosso tempo levam ao extremo a possibilidade prática de criar “factos alternativos”, vilificar a opinião científica e criar um mundo “pós-verdade”. Isso pode levar a um comportamento coletivo tipo “Maria vai com as outras”, assente no pressuposto de que se tantas pessoas acreditam numa narrativa (vg. “a ingestão de lixívia cura a covid-19”), então “essas muitas pessoas não podem estar erradas”.

Se dependesse dos ciberan@rquistas, a internet seria um faroeste e a verdade estaria na ponta de um tweet à la Trump. Mobilizemos os cidadãos!

José Magalhães – “Expresso” 4 junho 2021

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