O que Ana Rita Cavaco ouviu dizer e as duas faces da mesma incivilidade (Daniel Oliveira)
« (…) Dois dos bastonários ligados à área da saúde – pelo menos que eu tenha dado por isso, não se confundem com eles os dos farmacêuticos, psicólogos, médicos dentistas e nutricionistas – têm desempenhado um papel lamentável nesta pandemia. Esse papel é essencialmente político, extravasando a já ilegítima tentativa de se substituírem aos sindicatos. Mas não me vou dedicar a Miguel Guimarães. Não porque seja irrelevante. O poder absurdo que a Ordem tem na porta de entrada das especialidades também ajuda a explicar algumas das dificuldades que vivemos. Apenas porque, apesar de tudo, não o quero misturar com uma pessoa que promete ter futuro na cada vez mais desprestigiada política nacional. É para isso que está a trabalhar, pelo menos.
A bastonária Ana Rita Cavaco entra num outro campeonato. Já não estamos, no seu caso, a falar de aproveitamento político. Estamos a falar de um comportamento que degrada o espaço público, intolerável em quem ocupa o lugar que ocupa. Apesar de apenas 19 mil dos mais de 70 mil enfermeiros lhe terem dado o seu voto, é inconcebível que a classe se consiga rever no seu comportamento ofensivo e tóxico.
Sobre os casos de utilização indevida de vacinas, que não são uma originalidade portuguesa, Ana Rita Cavaco tem liderado uma caça às bruxas. Não se trata de denunciar casos de abuso. O abuso deve ser denunciado. Seria normal que quem tem poderes delegados pelo Estado usasse melhores vias do que as redes sociais, mas já não espero que alguém ainda ligue a isso. Grave é que a bastonária acuse pessoas sem qualquer tentativa de recolher provas, usando o poderoso argumento de “ouvi dizer”. Foi o que fez com Jorge Botelho, secretário de Estado da Descentralização e Administração Local, e a sua mulher, Margarida Flores, diretora regional do Instituto de Segurança Social do Algarve. Esclareça-se que nada sei sobre estas duas pessoas, para além dos cargos que ocupam e de serem, ao que parece, marido e mulher. Nem sei são competentes. Isso é, neste caso, relevante.
Escreve a bastonária (tenho de estar sempre a sublinhar que é bastonária, porque custa a acreditar): “Também ouvi dizer que a Presidente da SS de Faro, ilustre esposa de um Secretário de Estado, eu para nomes sou horrível, mas acho que a ilustre é Margarida Flores e o partner é o SE da administração local, acho que se chama assim. Pegou nela, dizem, na família e nuns amigos socialistas e toca de fazer de fura filas e chicos espertos a tomar a vacina. Se assim for, a quantidade de trastes por metro quadrado no País, que é pequenino, está insuportável! Oh criaturas horrorosas, fina flor do entulho! Que gente é esta meu Deus. Atenção, dizem…”
Ana Rita Cavaco sabe, como todos hoje sabem, que espalhada a mentira já não há como a travar. Mas a coisa piora. Quando foi contactada por um dos visados para a informar de que nem sequer fora vacinado, a bastonária (sim, bastonária) acrescentou um postscriptum: “Entretanto ligou-me agora o SE Jorge Botelho, agora fixei o nome, referindo que não foi vacinado, nem ele, nem a esposa mas que tem critérios para ser. Ficou aborrecido com o que as pessoas dizem. Achei que devia pôr aqui a sua posição mas confesso que fiquei confusa, não foi mas tem critério. Lembrei-me de outra coisa também, o critério neste país para se ter um alto cargo público, família.”
Perante a informação de que estava a difamar alguém, a bastonária (é mesmo bastonária) não pediu desculpas, não corrigiu o que escreveu. Preferiu manter a dúvida: “confesso que fiquei confusa.” E passou ao ataque, sobre as relações familiares na ocupação de cargos públicos, sem qualquer relação com os factos em causa e o processo de vacinação. Errar numa acusação desta natureza é grave, mas pode acontecer a qualquer pessoa num gesto imediato e irrefletido de que se arrepende. Saber que se mentiu e manter a insinuação, em vez de pedir desculpas pela injustiça cometida, define o caráter de alguém.
Jorge Botelho e Margarida Flores já tornaram pública a intenção de avançar com processos crime por difamação contra Ana Rita Cavaco. Sabem, todos sabemos, que isso não limpará os seus nomes do diz-que-disse. Sei por experiência própria que estas acusações permanecem para sempre no ar. E que a bastonária (pois, bastonária) continuará a usar um estilo que resulta.
O estilo de Ana Rita Cavaco é fácil de reconhecer. E nem os insultos relacionados com características físicas das pessoas escapa ao mimetismo de Trump e da sua cópia nacional – “a gorda fura filas”, foi como chamou à presidente da Câmara Municipal de Portimão, por ela ter dito que era obesa. Alguma vez imaginámos ler de um qualquer bastonário o termo “gorda” para se referir a um qualquer detentor de cargo público, por mais censurável que fosse o seu comportamento? O que aconteceu à nossa exigência para isto já não nos incomodar? A que ponto chegámos para alguém que dirige uma ordem profissional falar assim e tudo ser normal?
A tristeza com que vejo espertalhões passarem à frente para receberem a vacina é a mesma com que vejo uma bastonária com poderes delegados do Estado a liderar uma caça às bruxas nas redes sociais, chamando “gorda” a uma autarca ou difamando pessoas porque “ouviu dizer” que tomaram a vacina indevidamente e recusando-se a corrigir a difamação quando é esclarecida. São duas faces da mesma informalidade e desprezo por regras legais e de civilidade. Uma não se opõe à outra. São cozinhadas no mesmo caldo.
Para percebermos como está invertida a ordem moral das coisas, basta deixar uma pergunta. Francisco Ramos demitiu-se da liderança da task-force depois de ter ele próprio detetado irregularidades no processo de vacinação no hospital onde tem responsabilidades de direção. Se Ana Rita Cavaco descobrisse irregularidades na Ordem dos Enfermeiros, demitia-se? Acho que todos sabemos intuitivamente a resposta. E todos percebemos que tipo de pessoas estão a fazer julgamentos públicos de que tipo de pessoas.»
Daniel Oliveira – “Expresso” 4 fevereiro 2021
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