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Algumas notas mais sérias

10 de Dezembro de 2018


Dada a situação que o país está a viver – não é “mais uma” onda de greves pré-eleitoral, nem nos métodos nem na direcção tradicional – impõem-se algumas notas mais sérias.

Sobre os enfermeiros. A greve é muito grave. É mesmo. E tão grave quanto a situação laboral dos enfermeiros que ameaça a sua vida. Estão no limite das suas forças físicas e emocionais, por isso a greve tem o apoio que tem. Ao Governo cabe, em nome deles e nosso, e do nosso SNS, negociar condições decentes e pôr termo à greve. Não pode levar as cirurgias para o privado porque isso seria – atenção, muita atenção – furar a greve com substituição de trabalhadores. É ilegal, e imoral. A greve não afecta urgências, porque o que é urgente, mesmo operações não urgentes, estão a ser realizadas. Mas é evidente que o Governo tem que actuar rápido – sem furar greves, sem requisição civil, dando pelo menos o mínimo de vida decente a estes profissionais. O aumento das transferências do Orçamento para o SNS em 2019 é apenas de 262 milhões € e não de 612 milhões € como diz o Governo. Mário Centeno ministro tem que comunicar a Mário Centeno na Europa que a vida das pessoas não pode ser cativada.

Muitos alegam que a extrema direita ganhará votos por causa de greves e protestos. É errado. A extrema-direita na Europa não tem ganho votos à esquerda, mas pela falta de esquerda. Os votos saem da esquerda para a abstenção. 
Na verdade não sei se repararam que quando os coletes amarelos saíram à rua a falar de preço de bens de primeira necessidade a principal actividade marcada da esquerda era uma marcha sobre o clima… Já lá irei, ao papão do fim do mundo e às políticas – realmente ecológicas – que são urgentes. O que importa agora salientar é o seguinte – na Andaluzia os votos da extrema direita são transferências do PP. Os que eram do PSOE e ele perdeu foram para a abstenção. A taxa de abstenção cresceu 19% em 20 anos. 1% ao ano. Ou seja, parte da direita liberal, vendo os seus interesses ameaçados, está a migrar para o apoio à extrema-direita. E na esquerda não há nenhum programa que reflicta os interesses do mundo do trabalho – desde logo, mas não só, porque há poucos trabalhadores nos partidos de esquerda e muitos funcionários. E falta de estrutura teórica.

Veja-se o exemplo do clima. A revolta em França começa porque Macrón decide, depois de acabar com o imposto sobre as grandes fortunas, aumentar o preço dos combustíveis e chamou a isso “salvar o planeta”, economia “verde”. Ou seja, substituir impostos justos sobre a riqueza por impostos sobre o consumo, que afectam o custo de vida. Nas cidades pequenas é impossível viver sem carro, até para comprar comida. É evidente que uma política ecológica constrói transportes públicos, não patrocina mais carros, eléctricos ou não. Como é evidente que uma politica ecológica não taxa a entrada de carros nas grandes cidades, proíbe-os. Se taxar está a dizer que só os ricos entram. Se fizer transportes públicos e proibir a circulação está a dizer todos entram. E, como dizem e bem os coletes amarelos, até que nos dêem soluções alternativas reais queremos o carro, a gasolina e entrar nas cidades. Têm toda a razão.

Este é um dos exemplos em que – a reboque do Partido Democrata norte-americano – a esquerda no mundo vai abraçando causas que na aparência são muito bonitas mas na essência destroem a vida de quem trabalha. Podia dizer o mesmo face às questões de género, drogas e muitos outros temas. Fica para outro dia. A mais escancaradamente errada porém é a luta pelo subsídio de desemprego e assistencialismo em vez de luta pelo emprego. 
Foi bonito ver estas pessoas nas ruas de França exigir trabalho e não rendimento mínimo, um engenheiro da minha idade dizia “estou aqui porque o meu pai e a minha mãe trabalharam a vida toda e quando o meu pai morreu ela ligou-me em prantos porque não tinha dinheiro para o funeral, como é possível trabalharmos e sermos pobres?” Sim, os coletes amarelos colocaram a questão do trabalho com direitos – e não do viver da assistência social – como modo de vida.

Tenho visto estes dias a ver a tese dos “brandos costumes” cair – numa semana. Na mesma semana, coincidência, em que cai a tese dos Europeus “aristocráticos e colonialistas”, de onde teria desaparecido a classe trabalhadora. Junto a isto, a centralidade das ideias de esquerda dos coletes amarelos, ultrapassando a bolha identitária e ambientalista, como um furacão de bom senso – “eles estão preocupados com o fim do mundo, nós com o fim do mês” – é palavra chave dos protestos em França.

Têm que compreender o meu entusiasmo e perceber que é como um médico verificar que tinha razão numa dada experiência. Não é que ele goste do doente e da doença, mas gosta de ver aquilo que era uma abstracção, um conjunto de ideias, que – é preciso dizê-lo, eram defendidas por uma escassa minoria de pessoas, onde também me encontro -, ganharem vida aos olhos de milhares. Escrevemos sobre queda da taxa de lucro, revoluções, operários e fordismo quando a ampla maioria andava submerso na ecologia, feminismo e pós-fordismo. Basicamente nós detectamos – é preciso celebrá-lo sem falsas modéstias – a pneumonia. Quando a ampla maioria andava a medir a febre, convencido que a febre era a doença e não apenas um sintoma. Não curamos o mal social com paracetamol porque enfrentamos uma doença generalizada, hiper resistente, que ameaça a vida civilizada.

Portugal é um dos países da Europa com mais alta conflitualidade social. E vai ser, mais. A existência de uma ditadura por 48 anos, que muitos pensam que é o exemplo dos brandos costumes, é justamente a demonstração da intensa conflitualidade do país. Quer isto dizer – vou simplificar – o seguinte. Portugal viveu o seu XIX no meio de guerras civis e confrontos amplos, a burguesia apoiou-se no movimento operário para fazer o seu último acto da sua revolução francesa, a revolução republicana. Para o fazer, contra a nobreza, apoiou-se no movimento operário mas não quis dar-lhe nada em troca. Não quis e não havia muito, porque as suas taxas estão em concorrência com a Inglaterra – chama-se imperialismo. O papel subalterno do país. Por isso a Republica é marcada pelo ataque aos sindicalistas.

Mas como país pobre na Europa a burguesia sabe que a taxa de lucro não é alta pelo que não há grande espaço para migalhas – não foi possível conciliar lucros e salários e a única forma de o fazer foi impor uma ditadura que, por proibir sindicatos e partidos, consegui regular o salário para baixo. Mas isso foi possível num pais rural por 48 anos, em que a maioria da população não sabia o que era a ditadura, só a pobreza – viviam apartados do Estado, para o bem e para o mal. A ditadura era de viés urbano e sobre uma pequena vanguarda operária. Num país urbano é impossível um regime ditatorial sobreviver por largos períodos – revoluções são inevitáveis.

Portugal só pode ter paz social com direitos sociais, sem eles a conflitualidade vai crescer exponencialmente. Quem tiver paciência e quiser poderá ler esta tese que desenvolvi no livro Quem Paga o Estado Social em Portugal? e no ensaio Para onde vai Portugal?, ambos publicados pela Bertrand.

O meu optimismo histórico vem justamente não desta constatação de que vamos ter conflitos sérios e crescentes – já que gosto de paz e descanso, gosto de me deitar às 10 da noite e fazer piqueniques na montanha -, mas do facto de considerar que eles, os conflitos, são inevitáveis, mas…Mas que dada a importância crescente que hoje a classe trabalhadora tem no país (e na Europa ainda mais), e que mesmo sem o saber representa – esta classe – mais de 70% da população, e sendo muito mais qualificada enfrentará com mais força e mais civilidade a barbárie de atitudes que virão da direita quando virem o seu quinhão de lucros – construídos em séculos de trabalho barato -ameaçados.

Claro que há liberais com amor genuíno à democracia, na Europa há mesmo. Não vacilam. E há gente de esquerda que perde o pé facilmente e começa a exigir “medidas de excepção” quando entra em luta – o Metoo já é um cheirinho disso. A liberdade tem que ser defendida sem “mas” e virão de muitos lados distintos os que estão dispostos a sacrificá-la.

Mas a essência da barbárie, não tenham dúvidas, virá de um lado – das classes grande-proprietárias. 
Não imaginam como no passado educados liberais de direita se transformaram em monstros fascistas, bonapartistas, quando viram a sua conta bancária em perigo. E financiaram pela porta do cavalo milícias para perseguir dirigentes sindicais e democratas. Por isso é urgente que o mundo do trabalho deixe de pensar que a política é uma tarefa de uns tipos no Parlamento e passe a ter uma acção social cívica empenhada. 
Porque só isso – e não votar no mal menor – nos livrará da ira de quem está ameaçado de perder o poder. Poder que, com excepção dos anos de Abril 74-74 e alguns posteriores, foi sempre baseado no medo – medo da PIDE, medo da pobreza, medo do desemprego, medo da imigração. É isso que os portugueses (e ainda mais os franceses) perderam nestes dias. Perderam algum medo. Felizmente.

Raquel Varela – Facebook

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